Inspiração & Criatividade
A máquina de escrever no terreiro, as folhas virando borboletas, o pote com lápis e flores secas... tudo sussurra que criar é transformar o sentir em beleza.
🍃 Escrever como quem planta vento e colhe lembrança
Tem dia que a palavra não vem. Fica ali, atrás da cortina da alma, espiando, fazendo charme. Mas basta um cheiro de infância, um assovio de vento na fresta, e pronto — ela pula no papel feito menino levado.
Escrever, pra mim, é como plantar vento. A gente espalha sementes invisíveis — uma vírgula, um cheiro, um pensamento — e espera que, um dia, elas floresçam em algum canto do outro. Talvez no peito de quem lê, talvez num sonho guardado, talvez em silêncio.
A lembrança vem leve, ou vem rasgando. Mas vem. Às vezes, na forma de uma árvore com galho que abraça. Outras, numa frase dita pela avó que já virou estrela. Outras ainda, numa cena besta de infância que decide reaparecer num dia qualquer, só pra dizer: “ei, ainda tô aqui”.
Escrevo porque não sei viver sem contar. Porque o que não se conta apodrece, embolora, pesa. E o que se escreve ganha asas.
Talvez por isso eu goste tanto de papel amassado, caderno usado, letra torta. Porque é ali que mora a beleza: no imperfeito que tem história.
Escrevo como quem borda vento. Como quem olha pro céu e tenta costurar as nuvens com linha de memória.
E às vezes, quando termino um texto, fecho os olhos e escuto a minha árvore sussurrando: — Vai, menina. Já tá bonito. Agora deixa o vento levar.
🪑 A casa da tia Delinha como oficina de histórias
Tia Delinha não era minha tia de sangue, mas era de laço. Daqueles laços que a gente amarra com olho no olho, abraço apertado e panela de carne fervendo no fogão à lenha.
A casa dela ficava na parte mais alta do povoado. Tinha varanda comprida, chão batido e duas árvores frondosas que faziam sombra de tarde e mistério de noite.
A gente ia pra lá nas sextas-feiras. Criança, adulto, vizinho, primo distante — todo mundo. A casa era como coração de vó: sempre cabia mais um.
Brincávamos de passa anel, de esconde-esconde, de fazer cabana com lençol velho. Enquanto isso, os adultos conversavam lá fora, no terreiro, como se fossem personagens de um livro que ainda estava sendo escrito.
Eu me dividia entre os dois mundos: o da farra e o da escuta. Corria com as meninas, mas meus ouvidos estavam de olho nos causos de assombração, nas histórias de Lampião, nos cochichos sobre gente que eu nem conhecia.
Ali, aprendi que contar histórias era mais do que falar bonito. Era saber ouvir. Era respeitar o tempo da fala do outro. Era deixar que a vida se dissesse por si.
Tia Delinha ria alto, cantava de repente e dava conselhos entre uma colherada de doce de leite e outra. A casa dela tinha cheiro de verdade.
Hoje, quando me sento pra escrever, percebo: muitas das histórias que conto nasceram ali. Na varanda, na calçada, no banco comprido que parecia feito de tronco de árvore.
A casa de tia Delinha era oficina sem placa, sem crachá. Era onde aprendi que toda história boa começa assim: — Menina, tu não sabe o que aconteceu…
E assim sigo, ouvindo, lembrando, escrevendo. Com saudade e com lápis.
✈️ Imaginação: a viagem de avião mais verdadeira que fiz
Nunca tinha visto um avião de perto. Mas viajei tantos.
A primeira vez foi com Janaína e Dida. A gente se arrumou toda: cabelo molhado e penteado com grampos, talco no rosto como maquiagem, e um lenço no pescoço que dava um ar de importância. Tínhamos tudo o que uma tripulante de primeira precisava: vontade, papel na mão, e uma árvore que servia de pista de decolagem.
O avião era invisível, mas a emoção era real. Fizemos escala no Rio, depois seguimos pra São Paulo. Tudo isso sem sair do quintal. A bagagem era feita de bonecas, pedaços de panos, panelinhas e um mundo inteiro que morava dentro da gente.
Dida dizia que sua avó tinha voltado de São Paulo num compartimento do avião, e por isso a gente sabia como era a parte das malas. Imaginávamos os assentos forrados, o som do aviso de cinto de segurança, a comissária oferecendo mariola e suco de caju.
A cada viagem, algo novo acontecia: uma turbulência inventada, um piloto apaixonado, uma escala em Paris (com sotaque nordestino, claro).
Mas teve uma vez... uma vez que foi diferente. Vieram uns seminaristas na igreja, e convidaram a criançada pra uma “viagem com Jesus”. Sentamos nos bancos como se fossem poltronas. Fechamos os olhos. Cantamos. Imaginamos o céu.
Foi ali que entendi: imaginação também é fé. É crença de que se pode ir além do que os olhos veem. É avião sem asa, mas com coração.
Hoje, crescida, ainda viajo assim. Escrevo uma frase e decolo. Pego carona num cheiro, numa lembrança, num sonho antigo.
E sempre que fecho os olhos, ainda escuto aquela voz doce lá do fundo da infância:
— Senhoras e senhores, apertem os cintos... A imaginação vai levantar voo.
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