Memórias Afetivas
Histórias que carregam o sabor da infância, o aconchego das raízes e a simplicidade da vida no sertão Alagoano.
As paneladas da alma: cozinhar para lembrar quem sou
A panela era de barro. Feita na serra, comprada na feira, trazia nas bordas desenhos feitos à mão: riscos, flores, bolinhas — como tatuagens antigas que guardam histórias. Eu era pequena e me achava grande por ter uma só pra mim.
Ali, debaixo da sombra da minha árvore, eu fazia paneladas com o que ganhava: moela, coração, tripinhas. Um banquete de raízes e descobertas. A água fervia no fogão de trempe, e o cheiro subia, misturado ao da terra molhada, do milho assado, do feijão recém-batido, da infância.
Enquanto cozinhava, eu pensava. Pensava em como minha avó fazia igualzinho, mas sem receita escrita. Pensava nas mãos da minha mãe, tão firmes ao cortar, tão doces ao temperar. Pensava no silêncio que vinha de dentro e se sentava ao meu lado, como quem espera o ponto da comida.
Cozinhar era também lembrar. Cada ingrediente trazia um nome, um gesto, uma ausência. Cada aroma era um aceno do tempo dizendo: "lembra disso, menina?"
Comia devagar, sentada no galho preferido da minha árvore, com minha cuia de barro no colo. E sentia que ali, entre uma colher e outra, eu mastigava minha história. Era panela, era alma, era raiz.
E quando minha árvore murmurava, entre folhas balançando: — A panelada ficou ótima, menina! Eu sorria, inteira.
🌳 Minha primeira casa: a árvore que sabia ouvir
Minha primeira casa não tinha paredes. Tinha tronco. Tinha galho que abraçava. Tinha raiz que firmava o chão e me lembrava que eu também precisava criar as minhas.
Ali, naquele pau-ferro do quintal, eu morava sem aviso nem escritura. E ela me acolhia sem cobrança de aluguel — só exigia silêncio e um coração disposto a sonhar.
Tinha um galho mais grosso que era meu preferido. Me encaixava ali como quem volta pro ventre. Sentava com as pernas penduradas e os olhos perdidos no céu. Às vezes, levava um caderno. Às vezes, só levava o peito cheio de pensamentos e a alma precisando de colo.
A árvore não falava — mas ouvia tudo. Minhas dúvidas de menina da roça, meus amores inventados, meus medos de crescer e ir embora. Quando o vento soprava entre as folhas, eu fingia que era ela respondendo, soprando conselhos do jeito que só as árvores sabem dar: sem julgar, sem apressar.
De lá de cima, eu enxergava o mundo com outros olhos. Era como se pudesse tocar o céu e, ao mesmo tempo, ouvir o chão. Aprendi ali o valor do tempo, do silêncio, da solidão que acolhe e não assusta.
Hoje, quando me sinto perdida, fecho os olhos e volto pra lá. Subo no galho da lembrança, abraço o tronco da memória e escuto a árvore sussurrar:
— Eu ainda tô aqui, menina. — E você também.
Porque, no fundo, a gente nunca sai da nossa primeira casa. Aquela que mora na gente, mesmo quando a gente vai embora dela.
A festa da padroeira
Dezembro sempre chegava diferente. Trazia no vento uma pressa mansa, como quem sabe que algo bonito está por acontecer. Era o tempo da festa da padroeira — Nossa Senhora da Conceição — e, no povoado, tudo ganhava outro brilho.
As casas eram lavadas com capricho, o altar da igreja era enfeitado com flores de plástico bem vivas, e o andor era preparado com aquele cuidado que só mãos de fé conseguem ter.
Eu adorava a noite da comunidade. Era quando vinham pessoas de todo canto, e a igreja parecia pequena pra tanto canto de gente.
Cantávamos com força. Hinos que falavam de amor, de devoção, de saudade dos que já tinham partido. O coral, feito de vozes simples e corações afinados, ecoava por dentro e por fora da igreja.
Depois da novena, a festa seguia no bar de seu Caju. Dois salões — um pra dança, outro pro bilhar — e uma alegria espalhada no chão de cimento e nas risadas compartilhadas. Quando tocava a orquestra de Água Branca, tudo parecia filme antigo. Os casais rodopiavam como se o mundo fosse um salão.
Lembro da minha primeira comunhão. Vestido branco, sandália nova... Ou melhor, quase nova — porque descolou bem na hora da missa. A vergonha foi grande. Mas o gesto de Ritinha, que tirou a dela e me emprestou, foi maior ainda. Ali, no silêncio do templo e na simplicidade daquele gesto, eu entendi o que era comunhão de verdade.
A procissão no fim da tarde era silenciosa e bonita. A vela tremendo na mão, o andor balançando nas curvas da estrada de chão, as rezas repetidas como mantra de esperança. E os fogos, ah… os fogos estouravam como se anunciassem pro céu que ali, naquele cantinho esquecido do mundo, ainda havia fé.
Hoje, quando dezembro chega, sinto no peito uma saudade que tem cheiro de incenso, gosto de bolo de milho e som de hino antigo. E minha alma inteira caminha em procissão pela lembrança.
Porque tem festas que duram uma semana. Mas tem memórias que duram pra sempre.
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