Sementes de Histórias
Ela traz a delicadeza da infância, o aconchego do entardecer no sertão e o gesto íntimo da escrita — como se cada folha que cai fosse uma memória que pousa no papel.
🌧️ O dia em que a chuva brincou de poesia na minha janela
Era um domingo de mansidão. A casa cheirava a café coado na hora, e o silêncio miúdo da manhã parecia pedir colo. Do lado de fora, o céu brincava de esconder o sol com nuvens fofas e mansas, feito almofadas bordadas pela vovó.
Sentei-me na cadeira de balanço da varanda, como quem se senta no tempo. Foi quando ela chegou: fininha, tímida, primeiro um pingo, depois outro… E de repente, a chuva. Não aquela chuva barulhenta, desavisada — mas a que chega leve, como quem pede licença pra dançar.
Ela escorria pela vidraça em linhas tortas, formando poemas que só meu coração sabia ler. Ping… ping… ping… Era como se o céu tivesse saudade de mim, e estivesse me escrevendo cartas líquidas.
Lembrei da voz de minha mãe chamando da cozinha: — Venha ver o arco-íris, menina! E lá íamos nós, descalças no terreiro, rindo do mundo molhado.
Aquele dia ficou guardado em mim feito carta dobrada em envelope de lembrança. Porque tem chuvas que não molham a roupa — molham a alma.
E a gente nunca mais esquece.
🌽 Vó Luzia e o segredo da farinha de milho
Vó Luzia não media as palavras. Nem o sal. Mas media os gestos com uma precisão que só as avós sabem ter. Seu olhar era firme, mas seu riso escapava fácil, como cheiro de bolo assando no forno de barro.
Ela usava vestidos floridos, bem passados, e andava descalça no terreiro como quem pisa em chão sagrado. A farinha era feita ali, do milho que nascia no roçado de seu Zé, que ela escolhia a dedo: nem muito seco, nem muito novo — tinha que estar “pronto de saber”, como ela dizia.
Lembro-me da peneira, do pilão, do sol secando os grãos em panos abertos, da fumaça do fogo lambendo a panela grande. Mas o segredo, mesmo, não tava na farinha. Tava no modo de fazer.
Era o silêncio com que ela mexia. Era o canto baixo que ela entoava, quase uma reza, quase um afago. Era o tempo que ela respeitava, sem nunca apressar a quentura.
— Comida boa tem que ter tempo, menina — me dizia, com olhos marejando lembranças que só ela sabia.
Quando sentávamos pra comer o cuscuz, ela colocava por cima um pedacinho de queijo coalho derretido, manteiga escorrendo, e dizia, como quem partilha um segredo de realeza:
— O segredo é o carinho. É fazer pensando em quem vai comer.
Até hoje, quando o cheiro da farinha quente me alcança, é como se vó Luzia aparecesse, sentasse à minha frente e me dissesse:
— Tá vendo? É só lembrar com afeto que tudo fica gostoso.
E eu, com a boca cheia de saudade, sorrio de volta. Porque o amor, minha gente… o amor também se cozinha.
💨 O redemoinho e as cruzinhas de dedo
Lá vinha ele.
Do nada, levantava-se no meio do terreiro, rodando feito menino travesso que não sabe a hora de parar. Um tufo de vento cheio de poeira, folha seca e segredo do sertão. A gente saía correndo. Mas correndo com riso e com medo.
As mais velhas ensinavam: — Faça uma cruz com os dedos, menina! Rápido! — E diga: “Aqui tem Maria! Aqui tem Maria!” E a gente dizia. Com fé. Com força. Com voz de quem acredita mesmo sem entender.
O redemoinho vinha e passava. Deixava o terreiro revirado, as roupas do varal espalhadas, o cisco dentro de casa. Mas também deixava uma história nova. Sempre tinha alguém pra contar que viu uma sombra dentro, ou que escutou uma voz sussurrando. E a gente acreditava. Porque querer acreditar é também uma forma de poesia.
Certa vez, minha avó disse que redemoinho era coisa do cão. Noutra, ouvi que era alma de gente que não teve descanso. Mas na minha cabeça de menina, era só o vento brincando de misturar céu com chão.
De minha árvore, eu observava tudo. E pensava: será que o redemoinho também tem medo da cruzinha dos dedos? Ou será que ele só quer ser notado?
Hoje, quando vejo o vento girar folhas no quintal, ainda faço a cruz. Por costume, por saudade, por respeito.
E no fundo do peito, uma vozinha ainda diz baixinho: — Aqui tem Maria. Aqui tem memória.
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